Por Ir. Thiago Cristino, FMI
Estudante de Teologia
no Intituto São Boaventura
MERINO, Antônio J. Humanismo Franciscano: sucesso, acomodação, ironia?. In____ Experiência e pensamento, vida e sistema. FFB, 1999. pp 49-82
Considerações iniciais:
É conspícuo que a experiência e o pensamento humanos são duas realidades vertebralmente antropológicas muito bem estudadas e aprofundadas, além de ser um desafio constante para os vários teóricos.
Para Aristóteles a experiência é integrada ao conhecimento e aparece como algo necessário ao homem, mas não suficiente, por isso exige-se o raciocínio. O empirismo não é pura sensação. Antes é uma “síntese de percepções unificadas e estrtuturadas por um fator que unifica” (MERINO, 1999, p.49). Para Kant, na filosofia moderna, a experiência vai adquirindo um caráter mais complexo e é interpretada a partir da esfera do sujeito, do qual recebe sentido. Isto significa dizer que dentro de uma metafísica englobante, justifica-se a relação (pensada) homem-natureza, ou seja, mais do que uma relação vivida.
Todavia, “a experiência humana não se reduz à experiência exposta” (MERINO, 1999, p.50). Existe uma experiência em profundidade, que os alemães nomearam Erlebnis que é um ‘sentir-se perturbado e comovido” ou que Orteda e Vico, chamam de vivência, que implica um viver sensível e inteligentemente experiências e situações de um modo imediato. Neste contexto “a vivência torna-se mais do que uma con-sciência das coisas, pois é um saber iluminador que alcança a categoria de sabedoria e neste sentido é a fonte e a origem das teorias e dos sistemas” (MERINO, 1999,p.51). É bem sabido que “a consciência é um movimento de transcendência em sentido horizontal e vertical e que por issoos estados da consciência só podem ser compreendidos, se fizerem referência ao objeto para o qual tende e se orienta e que não pode ser reduzido a puro estado subjetivo e imanente” (MERINO, 1999,p.53).
Isto posto, o autor concentra suas ideias, dentro da ‘pluralidade dos mundos íntimos’ detém-se num primeiro momento sobre alguns apontamentos acerca da experiência religiosa baseada tanto em princípios filosófico quanto teológicos, perpassando por alguns autores e revendo seus pensamentos e englobando o mundo religioso, do qual arguiremos mais suscintamente sobre a experiência religiosa de São Franscisco de Assis. O autor.
1. Francisco ou o encontro ininterrupto com Deus
A experiência religiosa se potencializa à medida em que se nutre e reforça repetidos encontros com o objeto ou o sujeito da fé. Tal percepção é bem clara na vida de Francisco: encontros graduais e progressivos impulsionaram para ir sempre mais além. Esta ‘tensão ininterrupta’ faz com que a vida seja repleta não somente de poesia, mas de infinitas possibilidades. Este pensamento vai de encontro com o de Carballo que enxerga a “vida como horizonte privilegiado de encontros, consigo, com o Outro, com um livro e o mais importante, o encontro com o Encontro, com Deus” (MERINO, 1999, p. 55). Para Entralgo, a experiência religiosa é ‘forma suprema de encontro’ e ressalta uma tendência de, nestes encontros com níveis diferentes, pretender explicar e aplicar categorias normais a um fenomeno excepcional e singular, como é a relação vivida com Deus” (MERINO, 1999, p. 55).
Em seu Testamento, Francisco reflete que os encontros que teve com Deus, partiram da iniciativa Dele, por isso diz “o Senhor me deu”, por que é dom. Daí a clareza de enxergar a vida como inúmeras possibilidades de vivência, pois Deus entrou nela e a tornou possível. Porém, voltando o olhar para sua biografia, construída a partir de fatos, “de atitudes e comportamentos, veremos o que a experiência religiosa tem de renovação e de significação humanista” (MERINO, 1999, p. 55). Isso é perfeitamente visível na mudança de postura perante a vida de Francisco. Filho de pais ricos, tinha um comportamento extravagante, até que ‘o Senhor, fixando nele seu olhar’ mudou sua vida radicalmente: “enquanto coordenava suas ideias, esclarecia seus sentimetos, purificava seu coração, orientava seu comportamento e se definia socialmente. (...) Ele abandonou o século, mas jamais a sociedade” (MERINO, 1999, p. 57).
Tais sinais de sua conversão provocados pelo encontro com o Tu (Deus) e pela força contagiosa do Evangelho, não mostram uma simples crise sociocultural, mas é antes uma consciência revelada. Além disso, toda essa mudança comportamental fez com que Francisco desse mais um salto qualitativo na sua vida e passasse da vivência pessoal, para uma con-vivência, uma partilha com seu grupo estendida a todos os homens. Fato marcante para Francisco é o encontro com o leproso, que só entende o Tu do Outro a partir e por inspiração do Tu de Deus, pois “à medida em que prolongava o encontro com o Tu do Outro (pobre, indigente e leproso), mais se afirmava no encontro com o Tu absoluto” (MERINO, 1999, p. 59). A partir dessa atitude gratuita (amor ágape) Franscisco consegue apreender a pessoa do pobre como ‘realidade suprema’, diferentemente do eros que é um movimento para satisfazer a própria imperfeição e indigência.
2. O Pensamento franciscano brota de uma experiência pessoal e comunitária
“A arqueologia viva do franciscanismo é Francisco de Assis e a experiência da primitiva comunidade é como que o código genético que condiciona e quase determina todo pensamento posterior” (MERINO, 1999, p. 62). Deste modo o pensamento franciscano deve ser compreendido a partir desta arqueologia e do código genético que se funda na experiência compartilhada do grupo, a vivência transformada em con-vivência, isto é, uma praxis (amamus) quotidiana e não como um sistema teológico-filosófico elaborado pelos pensadores a partir de princípios racionais e abstratos (cogitamus/possumus).
É a partir do amamus que se poderá explicar e entender melhor o cogitamus e o possumus, ‘pois o amor é razão fundante e justificante do profundo entender e do reto operar’. “O pensamento franciscano procura ser a expressão mental inteligível da forma de experiência pessoal e comunitária que é a estrutura condicionante do conteúdo deste pensamento e a condição de inteligibilidade da própria linguagem na qual se expressa, o que supõe uma experiência integral cristã, prévia e concomitantemente ao manejo da pena” (MERINO, 1999, pp. 63-64). A diferença fundamental do pensamento da escola franciscana em comparação com outras, está na perspectiva e visualização do ponto de partida: o amor.
Para Boaventura o ‘penetrar e conhecer nos seres o modo como se originam’ só é possível a partir de um ponto de vista amoroso. Francisco “penetrava os mais ocultos mistérios, e onde não podiam chegar a ciência adquirida, penetrava o afeto do discípulo amante” (MERINO, 1999, p. 68). Assim, quem ama com maior profundidade compreende com maior sabedoria o mais vivente, a fim de que a vida possa ser iluminada e clarificada a partir do pensamento inteligente e afetivo.
3. Palavra e Silêncio, dois momentos do homem
A palavra na tradição franciscana é vista não somente como fenômeno cultural, social, psíquico, fonológico, mas antes é ferramenta e meio para expressar sentimentos, pensamentos, desejos, etc. Enfim, e comunicação, diálogo com o Outro e com Deus. Este é o sentido para o qual E. Cassirer define o homem enquanto “animal simbólico” (MERINO, 1999, p. 69), que se articula por mei da linguagem, que não cria somente cultura, mas que dá sentido muitas moções humanas.
As moções do espírito franciscano levam os pensadores desta escola a uma vivência comum de vida, de pensamento e de espírito, o que propicia uma língua e linguagem próprias. A palavra tem como fim de ‘expressar, instruir e mover’, todavia só conseguirá tal obejtivo se existir uma conexão profunda com a alma que a profere e ao espírito daquele ao qual se dirige. “As palavras, no pensamento franciscano, não só têm sentido na sintaxe gramatical e na dialética do conceito, mas também reenviam à profundidade de quem as emprega e ao silêncio interior do qual se nutrem” (MERINO, 1999, pp. 70-71). Para Ortega, o dizer e o falar são distintos. O primeiro remete a um estado mais profundo do que o segundo ‘e é necessário dirigir-se a esse profundo para para compreender o alcance da língua’.
Para Heidegger a ‘linguagem é a casa do ser. Em sua vivência mora o homem’. Portanto, à linguagem precede o silêncio, à palavra procede a escuta, pois ‘o homem deve, antes de falar, deixar que o ser se fale de novo’. Existe ainda uma íntima conexão entre falar, pensar e ser: ‘o ser se ilumina e se clarifica no pensar, o pensar se manifesta e se articula no falar, e o falar remete ao ser’ (MERINO, 1999, p. 73).
A linguagem profunda e autêntica deve conectar com o silêncio, ‘espaço sonoro da Presença total’. É no silêncio profundo e falante que o homem pode radicar uma de suas melhores forças para compreender-se a si mesmo e aos outros.
4. Hermenêutica franciscana
Se o pensamento franciscano remete a uma experiência prévia (práxis) e considera o silêncio e a palavra como sendo fundamentais, há que existir algo para compreender e expor seu sentimento profundo. A hermenêutica é pois esse meio que dará uma interpretação distinta e explicação clara, que abarca seu sentido literal, doutrinário, espiritual e existencial. Não obstante, “a hermenêutica vai desde a interpretação dos sinais até a exposição das experiências humanas profundas, que criam esses sinais, passando pelo significado de um sistema e pela compreensão da mensagem dos sinais” (MERINO, 1999, p. 77). Por isso a hermenêutica franciscana tem seu início nas vivências originárias (obras) donde se torna compreensível o texto escrito breve e simples e o pensamento. Pois, o melhor do franciscanismo está ‘não na palavra escrita, mas na palavra falada, no gesto e no comportamento vivido’.
O pensamento franciscano desse modo remete a um “espírito comum que é história vivida e compartilhada, mas não conluída e esgotada” (MERINO, 1999, p. 78), por isso há de chegar aos ‘significantes chaves’. Do mesmo modo o simbolismo franciscano conota uma ‘grande relação com o Ser e com os demais seres’.
Uma hermenêutica franciscana, portanto, saberá interpretar o texto no seu contexto.
Considerações finais:
A curiosidade, a busca pelo saber é intrínseca ao homem. Todavia, saber e conhecimento se manifestam de muitos modos. Há alguns que se servem de intuições puramente intelectuais; outros preferem a intuição emotiva, que visam antes da essência o valor dos seres; outros ainda pela intuição volitiva que considera seu objeto bem como seu correlativo “como uma realidade que está aí como existência e que pode converter-se em resistência” (MERINO, 1999, p. 65). Neste moldes a escola fraciscana se encaixa no segundo esquema, isso justifica o fato de se encontrar no pensamento fraciscano ‘mais sabedoria do que ciência’. A primeira relativa à ‘espcialização da vida, a arte do saber viver’ e a segunda está relacionada ao conhecimento das primeiras causas e das razões últimas’.
O conceito de experiência carece de maior compreensão, pois é empregada nos mais variados sentidos, como por exemplo: “o contato do homem com a realidade que o envolve, a apreensão de um objeto, modo de agir, uma forma de ser, etc.” (MERINO, 1999, p.49). Vale ressaltar de antemão que a experiência é um conhecimento prático do homem que está em contato imediato com a realidade. O homem deve estar aberto e sair de si (ex) para dirigir-se ao mundo (peri) e percebê-lo (entia). “De tal modo a experiência não é tanto uma ciência quanto uma con-sciência do que acontece ao homem, quando está em relação com as coisas” (MERINO, 1999, p.50), o que podemos chamar de fenomenologia e existencialismo, que por sua vez deriva daquele.
As experiências religiosas com o Transcendente, levam a uma ação, isto é, ao encontro com o Outro, expressão do Ser, cuja realidade suprema de pessoa, faz-se presente por aquilo que é e não por aquilo que tem. Para os cristãos e, dentre eles Franscisco que soube acolher a fé de forma incondicional, não pode haver dicotomia entre fé e vida, mas na liturgia da vida esses dois aspectos são tidos como uma unidade. Segundo Scoto, “o amor é verdadeiramente ação” (MERINO, 1999, p. 66).
O pensamento franciscano, antes de ser metódico é prático; antes de ser especulativo é fruto de vivências. O caminho é inverso. Primeiro experimenta-se ‘na pele’ depois da constatação sistematiza a vivência, fruto do encontro pessoal, com o Outro, com a natureza e com o próprio Criador que acontece no silêncio. Neste sentido onde falta a palavra o silêncio fala. Passando por este processo a palavra não se torna fria, porque é fruto do silêncio fecundo que penetra o mais íntimo do espírito dos ouvintes, suscitando neles compunções e de expressar-se ao grande Tu.
O homem tem suas vivências sob vários ‘mundos’ da filosofia, da ciência, da teologia, por exemplo, e há que respeitá-los, pois canalizados de maneira adequada, são expressão da riqueza e possibilidade do homem concreto.
Apreciação pessoal:
Num decurso por várias correntes filosóficas o autor conduz pedagogicamente o leitor a uma ‘aventura do saber’ a partir das experiências e de modo especial das experiências religiosas, centrada na pessoa/espírito de Francisco de Assis, figura emblemática ainda em nosso tempo. A experiência religiosa e ora não tratada mais como sendo algo individual e subjetivo (fruto da imaginação), tem seu conceito ampliado e lhe é dada uma legitimidade mais fundamentada na sua objetividade.
É de suma importância manter um relacionamento fecundo e mútuo entre fé e razão. É próprio do homem procurar desvendar os profundos mistérios que circundam sua vida e a vida do cosmos. A razão o auxilia metodicamente na descoberta desses mistérios que levaram a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. A fé o ampara quando não obtém respostas precisas a partir da experiência realizada. A fé e a razão, conciliadas, fazem do homem um ser realizado que pode melhorar a si e sua sociedade.
Mesmo sabendo que, de fato, as ciências não conseguem abarcar em seus conceitos o Ser, o pensamento, o dizer e o falar acerca Dele, elas acabam por tornar-se um exercício de aprofundamento do conhecimento, sobretudo naquele que tem por fruto os encontros com o Transcendente, o que não o torna refém das nossas palavras, mas encontra no silêncio um sentido coeso para a vida. O processo de reflexão que exige silêncio ou solidão numa atitude filosófica, isto é, voltar-se para si mesmo, é fundamental para a busca e encontro com a Verdade (Deus), como passo importante para o discernimento que nos acompanha em nossas vivências religiosas.
A tentativa de harmonizar silêncio e palavra, isto é, equilibrar dentro de si duas dimensões da existência que orienta o ser e o modo de ser-no-mundo da pessoa é outra colaboração bastante promissora. Isso nos remete a uma dimensão essencial da vida do cristão – lex orandi, lex credendi – ou seja, aquilo que se proclama com a língua (Fé) seja vivenciado e praticado pelas boas obras, reforçando assim a unicidade entre Fé e Vida, numa dimensão integradora na dinâmica da tríplice experiência (Homem-Deus-Criação). Desta forma a experiência religiosa (fé) e a razão não se aniquilam, mas se ajudam e se complementam.