Pe. Fábio C. Junges[1]
A Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano aborda um tema fundamental e desafiador. Exige, por isso, uma abordagem cautelosa e audaciosa, por mais paradoxal que esta afirmação seja. Isto porque já não são poucos os artigos publicados em sites e jornais que condenam esta reflexão realizada pelas Igrejas. Muitas dessas reflexões são destituídas de fundamentação teológico-pastoral, além da falta de um conhecimento profundo do Texto-Base orientador desta temática reflexiva. Outras apresentam com justeza dificuldades e problemas nas abordagens realizadas pelas Igrejas.
A fim de que as nossas reflexões sobre o tema da Campanha da Fraternidade não sejam destituídas de fundamentação, alguns pressupostos de base necessitam ser colocados. Para que esta reflexão teórica não se apresente tão facilmente com significantes flutuantes, desprovidos de coalescência conceitual, esta reflexão procura correlacionar economia e espiritualidade. Este texto, resultante de uma palestra proferida na Assembléia Diocesana de Pastoral, tem como objetivo mostrar em que perspectiva o discurso teológico sobre o tema da economia é possível e viável.
Espiritualidade na Economia?
Pois bem, qual é o assunto central da Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano? Seria a economia, o capitalismo, o neoliberalismo, o desemprego, a pobreza, a economia solidária? A resposta é sim e não. Todos estes temas entram na reflexão, mas o tema central, enquanto teológico-espiritual, é a relação entre “economia e vida”, vista na perspectiva da fé cristã. Há se destacar que, enquanto Igrejas, a reflexão sobre economia e vida precisa ser colocada na perspectiva da fé cristã e não a partir de outras determinações externas. Se a reflexão for feita desse modo, então as Igrejas se encontram no seu direito discursivo, pois, como veremos, a questão econômica é uma questão de espiritualidade, desde que bem articulada.
A materialidade da vida
Podem ser apresentadas duas dimensões dessa relação fundamental entre economia e vida: a materialidade da vida e o aspecto teológico-espiritual da economia. Defendemos a tese de que a temática abordada nesta Campanha da Fraternidade ajuda as comunidades a tomarem mais consciência da materialidade da vida e da íntima relação entre essa dimensão e a salvação. Iremos elucidar, agora, esta primeira dimensão: a materialidade da vida. Querendo ou não, enquanto cristãos, temos uma tendência histórica de espiritualizar por demais a noção de vida. As Igrejas mantêm uma parcela de culpa nesta tendência, uma vez que enfatizaram em demasia a “salvação da alma” e a “vida eterna”, em detrimento dos valores e recursos econômicos.
Quando espiritualizamos demais a vida, a própria evangelização ou pregação da Palavra de Deus acaba restrita somente à dimensão transcendental, sem relação com os aspectos materiais e econômicos da vida humana. Do mesmo modo, quando tudo espiritualizado, a ação ou preocupação pastoral-social em favor das pessoas pobres ou em necessidade passa a ser um complemento secundário da missão. Por outro lado, quando tudo espiritualizado, faz com que cristãos atuantes no campo econômico-social-político tenham dificuldades em falar sobre evangelização, salvação ou missão. É a tendência muito forte de valorizar somente o trabalho social em detrimento da espiritualidade.
Muitas das críticas já elaboradas sobre a Campanha da Fraternidade deste ano são decorrentes desta errônea e parcial compreensão de espiritualidade. Por isso, vale destacar mais uma vez que a evangelização está a serviço da vida (Jo 10,10). A vida humana depende do trabalho, da natureza e do funcionamento da economia. Portanto, se perdermos de vista a dimensão material-econômica da vida, perdemos de vista o ser humano real e concreto e, assim, perdemos o núcleo da missão cristã. O desejo e promoção da vida plena e abundante para todos é a missão do cristianismo e das Igrejas.
O aspecto teológico-espiritual da economia
À primeira vista, falar em aspecto teológico-espiritual da economia soa estranho para a maioria dos cristãos. É quase consenso de que a economia trata das questões materiais, enquanto que a teologia e a espiritualidade das questões imateriais. Contudo, a afirmação de Jesus, “ninguém pode servir a dois senhores (Mt 6,24), revela uma profunda relação entre economia e teologia ou espiritualidade. Para que esta relação seja de fato percebida, é preciso elevar a questão econômica ao coração da teologia e da evangelização.
Jesus coloca uma disjuntiva: “Ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). Jesus mostra que dinheiro pode ser e foi colocado no mesmo nível de Deus. Quando a questão econômica passa a ocupar o lugar de Deus, o nosso único Absoluto, então o dinheiro se torna um problema teológico e espiritual: uma questão de discernimento entre o Deus verdadeiro (da vida) e o deus falso ou ídolo (dinheiro). Isto é, da submissão a um “deus falso” ou ídolo que exige sacrifícios de vidas humanas resulta o problema e o tema teológico, bem como, da evangelização e da espiritualidade desta Campanha da Fraternidade: economia e vida.
Os teólogos Assmann e Hinkelammert trabalharam teologicamente esta problemática de modo paradigmático. Eles criticam não o mercado enquanto tal, mas o mercado quando se torna absoluto, isto é, enquanto critério máximo (absoluto) para decisões sobre a vida e a morte na sociedade (idolatria). A idolatria é decorrente, em boa medida, do deslocamento da fonte de espiritualidade na nossa sociedade atual: da religião para a economia (mercado). É o “espírito do capitalismo” conforme bem definiu o sociólogo Max Weber. Ou seja, conforme o sociólogo Marx, a mercadoria, em meio às relações sociais, torna-se “cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas”. Seguem abaixo alguns exemplos de espiritualidade na economia.
Antes, as pessoas trabalhavam e lidavam com as questões econômicas em função da satisfação das necessidades de viver (a dimensão material da vida). Agora, ganhar dinheiro, consumir e ostentar o consumo passou a ser o sentido último da vida. No passado, não tão distante, quando as pessoas se sentiam “impuras” iam às Igrejas ou a outros lugares sagrados para rezar ou participar de algum rito de purificação. Hoje em dia, muitas pessoas preferem ir a um Shopping Center fazer compras ou ver vitrines para se purificarem. Essas experiências econômico-espirituais são tão marcantes nos dias de hoje que, mesmo nas Igrejas, têm uma presença muito forte: o orgulho por causa de um padre ou pastor da sua Igreja vender muitos CDs ou fazer muitos shows; padres e pastores de sucesso espiritual-econômico estão se tornando modelos para novos candidatos ao sacerdócio ou pastorado.
Dois níveis de discussão da economia
É preciso demarcar com precisão a tarefa e a não tarefa das Igrejas e da Teologia quanto à questão econômica. A não tarefa teológica se situa no campo técnico-operacional da economia. A discussão sobre a melhor forma de combater a inflação, de aumentar o nível de emprego ou melhorar a distribuição de renda não é do campo da teologia, mas sim das ciências sociais e econômicas.
A tarefa teológica consiste na crítica à idolatria que ocorre na economia e esta tarefa pertence ao coração da tradição bíblica. Como fazer? Fazendo uso de mediações como sempre insistiu a Teologia da Libertação. Com a ajuda da análise das ciências econômicas é preciso desvelar os fundamentos teológicos da economia, isto é, desmascarar as idolatrias que justificam mortes em nome de falsos deuses (1º e 2º mandamentos), salvando a vida contra as forças da morte (5º mandamento), das mentiras (8º mandamento) e dos roubos (7º mandamento).
Afirmação contundente
“O lugar das Igrejas é onde Deus está atuando, Cristo está sofrendo e o Espírito está cuidando da vida e resistindo aos principados e poderes destrutivos. As Igrejas que se mantiverem distante desse lugar concreto do Deus Triuno não podem afirmar que são Igrejas fiéis” (Texto-Base, p. 45). Desta afirmação contundente resultam algumas ponderações, a saber: as Igrejas, ao propor a Campanha da Fraternidade Ecumênica sobre a questão econômica relacionada com a vida, precisam se auto-afirmar: “nós não podemos servir a Deus e ao dinheiro”. Em forma de perguntas: nossas Igrejas servem a Deus com o dinheiro? Ou se servem de Deus para ter dinheiro?
Uma oração profética
Nada melhor que terminarmos nossa reflexão com a oração profética do Pai-Nosso:
Pai nosso, que estás no céu (não Pai meu)
Santificado seja o teu nome (não o meu nome)
Venha a nós o teu reino (não o meu reino)
Seja feita a tua vontade (não a minha vontade)
Assim na terra como no céu (não no céu como na terra)
O pão nosso de cada dia (não o pão meu)
Perdoa-nos as nossas dívidas (não somente ofensas)
E não nos deixes cair em tentação (não somente sexual, mas principalmente econômica e social: amor ao dinheiro; redução do ser humano à condição de consumidor; ato de dignificar a pessoa por conta de sua capacidade de consumo).
Mas livrai-nos do mal, pois teu é o Reino, o Poder e a Glória para sempre (não é nosso o reino, nem o poder, nem a glória do momento).
Considerações finais
Sabemos que a rotina nos anestesia e, na repetição, cria a ilusão (idolatria, 1º e 2º mandamentos) de estável normalidade. Podemos estar diante do precipício (economia atual), mas acostumados a vê-lo a cada minuto, não temos ideia da queda que nos espera se dermos um passo à frente (morte, 5º mandamento). Nada é mais perigoso do que os hábitos (roubos, acúmulos, mentiras, 7º, 8º e 10º mandamentos) que se apoderam de nós como oculto invasor noturno (“não nos deixes cair em tentação”, como reza o Pai Nosso), que não percebemos nem notamos quando nos assalta e nos domina (idolatria). Portanto, nada mais benéfico que sejamos puxados pelo braço e que nos mostrem o abismo, isto é, a idolatria (1º e 2º mandamentos) que mata (5º mandamento) como pretende fazer a Campanha da Fraternidade deste ano, ao chamar a atenção para as nossas relações econômicas.
[1] Padre da Diocese de Santo Ângelo, mestrando em Teologia Sistemática pelas Faculdades EST, de São Leopoldo.
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