Por: Pe. Juan José Armendáriz Lerga
Reitor e docente do Seminário Missionário
Arquidiocesano Redemptoris Mater de Brasília.
Discorre
a respeito da comunhão eclesial como elemento basilar da espiritualidade do
presbítero, em especial o sacerdote diocesano, apresentando sua gênese
teológica e seus aspectos práticos no modus
vivendi do ministro ordenado. Para isso analisa os principais documentos
magisteriais pós-Concílio Vaticano II, em especial os emanados dos dicastérios,
os do pontificado de Papa João Paulo II e de algumas conferências episcopais,
além da legislação canônica em vigor.
1 Um Novo Estilo de Vida Pastoral
A
formação presbiteral na contemporaneidade tem sido vislumbrada pela Igreja como
um dos elementos basilares na Nova Evangelização. Trata-se, evidentemente, de
um fenômeno complexo que envolve uma gama variada de questões. A própria
natureza do ministério ordenado exige, por parte das Igrejas locais, o
estabelecimento de um programa formativo que contemple, além de uma sólida
formação acadêmica, uma educação espiritual adequada e alicerçada no fomento ao
espírito de comunhão e solidariedade eclesial. Em síntese, todo o ciclo
formativo dos seminaristas e dos novos presbíteros deve ser amalgamado a partir
destes dois aspectos que, de forma conjunta, permitam à Igreja atuar com
ousadia frente às novas realidades sociais que se descortinam, exigindo, portanto,
uma nova práxis por parte dos seus pastores. É nesse sentido que João Paulo II
afirma:
Hoje, de modo
particular, a prioritária tarefa pastoral da nova evangelização, que diz
respeito a todo o Povo de Deus e postula um novo ardor, novos métodos e nova
expressão para o anúncio e o testemunho do Evangelho, exige sacerdotes radical
e integralmente imersos no mistério de Cristo e capazes de realizar um novo
estilo de vida pastoral [1].
Aparece,
pois, como desejo de João Paulo II e da
Igreja, bem como resposta ao desafio da nova evangelização, um “novo estilo de
vida”. Abordou-se com profusão a
identidade do sacerdote diocesano, e às vezes, com certo complexo de
inferioridade frente à identidade do sacerdote religioso que, frente ao carisma
de seu instituto, aparenta ser detentor de um estilo de vida bem definido em suas Constituições
e Regras de Vida.
Porém,
os documentos da Igreja são claros e precisos a respeito da espiritualidade do
sacerdote diocesano. Vamos nos deter, somente, em um aspecto, a saber: a vida
em comum do presbítero diocesano.
2 A Comunhão: Exigência da Verdadeira Identidade Sacerdotal
O
Diretório para o ministério e a vida do
presbítero, em sua introdução, aponta a comunhão como elemento norteador
da missão presbiteral:
Assim, por exemplo,
pretendeu-se esclarecer que a verdadeira identidade sacerdotal, como o Divino
Mestre a quis e a Igreja viveu sempre, não é conciliável com aquelas tendências
democraticistas que quereriam esvaziar ou anular a realidade do sacerdócio
ministerial. Deu-se particular ênfase ao tema específico da comunhão, exigência que hoje se sente
dum modo particular dada a sua incidência na vida do sacerdote [2].
Seria
necessário e muito útil entrar nos aspectos teológicos da dimensão
eclesiológica do presbítero, porém vamos nos centrar, sobretudo, nos aspectos
práticos e concretos. Os números 12 e seguintes do Diretório em questão desenvolvem
esta dimensão de comunhão com idéias verdadeiramente enriquecedoras: “Para esta
comunhão com Cristo Esposo, também o sacerdócio ministerial é constituído -como
Cristo, com Cristo e em Cristo- naquele mistério de amor salvífico de que o
matrimônio entre cristãos é uma participação”[3].
Esta
comunhão, como ensina mais adiante o documento da Congregação para o Clero,
contempla, por sua própria natureza, a presença e a ação da Hierarquia
eclesiástica. Para não confundi-la com o chamado “democraticismo” onde tudo
ficaria reduzido a uma espécie de associação de clérigos na qual as relações
mútuas se configurariam dentro de uma perspectiva sindical com reivindicações e
interesses de partido, totalmente alheios à comunhão eclesial.
Os
padres conciliares são categóricos em atribuir valor primordial aos aspectos
comunitários da missão presbiteral: “Nenhum presbítero pode por isso, isolada e
como que individualmente, cumprir de maneira satisfatória a sua missão, mas há
de unir suas forças às de outros Presbíteros, sob a direção dos chefes da
Igreja” [4].
Os presbíteros, segundo o mesmo documento, estão unidos entre si pela íntima
fraternidade sacramental. É de suma transcendência, portanto, que todos eles,
independentemente de serem diocesanos ou religiosos, ajudem-se mutuamente,
cooperando, assim, com a verdade. Cada um está unido com os demais membros do
presbitério por vínculos de caridade apostólica, de ministério e de
fraternidade[5].
Cada um, portanto, se une assim, com seus irmãos pelo vínculo da caridade, da
oração e da total colaboração, e desta forma se manifesta a unidade com que
Cristo quis que fossem consumados para que o mundo conheça que o Filho foi
enviado pelo Pai.
O
Código de Direito Canônico, em seu cânon 275, parágrafo 1º, inclui, entre as
obrigações e direitos dos clérigos, o espírito de comunhão: “Os clérigos, por
trabalharem juntos para o mesmo objetivo, a saber, para a construção do Corpo
de Cristo, estejam unidos entre si pelo vínculo da fraternidade e da oração e
se prestem mútua ajuda, de acordo com as prescrições do direito particular” [6].
A
constituição dogmática Lumen Gentium,
nesta mesma direção, insiste: “Em virtude da comum ordenação sacra e missão,
todos os presbíteros estão unidos entre si por íntima fraternidade, que
espontânea e livremente se manifesta no mútuo auxílio, tanto espiritual como
material, tanto pastoral como pessoal, em reuniões e comunhão de vida, trabalho
e caridade” [7].
3 Questões Práticas
A fim de se evitar que o
aspecto comunitário da vida presbiteral se restringisse a um elemento meramente
teórico, o Concílio Vaticano II se ocupou em descer a detalhes concretos de
amor, carinho e cooperação, indicando, assim, posturas a serem cultivadas para o
estabelecimento de um ambiente fecundo de comunhão: os jovens presbíteros devem
ser ajudados pelos de idade avançada nas primeiras iniciativas e trabalhos do
ministério, hoje sempre tão árduos devido ao ambiente, tantas vezes hostil ao
cristianismo e à Igreja. Antigamente as crises do presbítero chegavam após
vários anos de atividade pastoral. Hoje em dia, a experiência confirma que tais
confrontos se principiam já nos primeiros meses de ministério. Por isso, os
presbíteros anciãos devem se esforçar por compreender a mentalidade dos jovens
e tratar de ajudá-los, apoiando suas iniciativas. Os jovens, por sua vez, são
estimulados a respeitar a experiência dos mais velhos, pedindo-lhes conselho e
colaborando alegremente com eles. O Concílio supramencionado exorta também à
prática da hospitalidade, da beneficência e da assistência mútua, evidenciado,
deste modo, a carinhosa preocupação da Igreja pelos presbíteros enfermos e
aflitos, pelos que estão demasiadamente sobrecarregados pela atividade pastoral,
pelo que vivem em solidão aterradora, inclusive os desterrados e perseguidos, situação
não incomum à época atual, em que o “abaixo assinado” no seio da paróquia
tornou-se prática corriqueira, convertendo o padre em objeto descartável, freqüentemente
condenado por ondas de críticas e murmurações de toda sorte, inclusive,
calúnias sérias e graves que, em certos casos, tem o aval dos seus próprios
companheiros.
O texto conciliar recomenda,
ainda, que os presbíteros se reúnam “com gosto e prazer” para descansar. E
finaliza, reafirmando a importância de se estabelecer outras medidas práticas
que fomentem a comunhão e o auxílio mútuo entre os membros do colégio
presbiteral:
Além disso, para os Presbíteros encontrarem mútuo auxílio
no cultivo da vida espiritual e intelectual, para melhorarem a cooperação no
ministério, para se livrarem dos perigos de solidão que acaso surgirem,
incentive-se entre eles alguma vida comunitária e alguma sociedade de vida que,
no entanto, pode revestir-se de muitas formas, segundo as necessidades
diversas, pessoais e pastorais, como seja a coabitação, onde possível, ou a
mesa comum, ou ao menos reuniões freqüentes e periódicas. Merecem alta estima e
diligente promoção as associações que, com estatutos reconhecidos pela
autoridade competente, por um plano acertado e convenientemente experimentado
de vida, numa assistência fraterna, estimulam a santidade dos sacerdotes dentro
do exercício do ministério, num esforço de assim servir a toda a Ordem dos Presbíteros.
Afinal, por motivo da mesma comunhão no sacerdócio, saibam-se os Presbíteros
especialmente obrigados para com os que se encontram em alguma dificuldade. Em
tempo lhes prestem apoio, mesmo se for o caso de admoestá-los discretamente.
Aos que, porém se transviaram em algum ponto, acompanhem-nos sempre com
fraterna caridade e alma grande, multipliquem em favor deles ardentes súplicas
a Deus e se lhes revelem continuamente como sendo de fato irmãos e amigos [8].
Dentro
deste contexto, o Diretório supramencionado dedica várias páginas para discorrer
a respeito do assunto. O item “Comunhão sacerdotal” aborda a comunhão como
realidade trinitária, cristológica, eclesial, dissociada da perspectiva
hierárquica da Igreja, da obediência ao Papa e aos ordinários, da celebração eucarística
e da atividade ministerial em seu conjunto: “Tal adesão, para além de ser
expressão de maturidade, contribui para a edificação daquela unidade na
comunhão que é indispensável para a obra de evangelização” [9].
4 Elementos de Espiritualidade do Presbítero Diocesano
Os
aspectos que caracterizam a espiritualidade do sacerdote diocesano são a
fraternidade sacerdotal e a agregação ao presbitério, em obediência ao Bispo,
com o qual se pede “um relacionamento franco, vivo e filial, assinalado
por uma confiança sincera, por uma amizade cordial, por um verdadeiro esforço
de conformidade e convergência ideal e programática no espírito duma
inteligente capacidade de iniciativa e de coragem pastoral” [10].
O
sacerdote não pode atuar sozinho. De fato, todo múnus sacerdotal nasce da
comunhão, o que torna, portanto, imperativo, sua pertença ao presbitério, “tornando-se irmão de
todos aqueles que o constituem”[11].
Tal dispositivo é endereçado a todos os presbíteros, sem exceção, inclusive aos
sacerdotes membros de institutos de vida consagrada ou de sociedades de vida
apostólica, bem como os que se encontram a serviço de qualquer movimento ou
realidade eclesial devidamente aprovada. Por sua vez, o bispo deve respeitar “o estilo
de vida exigido pela agregação ao Movimento e esteja disposto, de acordo com as
normas do direito, a permitir que o presbítero possa prestar o seu
serviço em outras igrejas, se isto faz parte do carisma do mesmo Movimento” [12].
O
Diretório para o ministério e a vida do
presbítero apresenta esta comunhão sacerdotal como o lugar privilegiado
para encontrar os meios específicos de santificação e evangelização e a ajuda
necessária para superar as limitações e fraquezas próprias da natureza humana
que hoje particularmente se deixam notar.
Somos
cônscios, de modo especial os formadores de seminários – pela própria
experiência e pelos anos de serviço – das dificuldades que o presbítero se
defronta em relação à sociedade hodierna: rejeição em muitos ambientes,
excessiva afetividade e familiaridade em outros, não poucas vezes manifestadas
em um claro “assédio sexual” por parte de muitas mulheres. Acrescenta-se,
ainda, os perigos dos modernos meios de comunicação social, tais como Internet,
televisão, celular, anúncios publicitários, etc.
Neste
contexto pouco favorável, a comunhão efetiva se apresenta como elemento
potencializador da graça divina. Por isso, devem-se fazer “todos os esforços
para evitar viver o sacerdócio de um modo isolado e subjetivista e para
favorecer a comunhão fraterna dando e recebendo – de sacerdote a sacerdote – o
calor da amizade, da assistência cordial, do acolhimento, da correção fraterna,
muito consciente de que a graça da Ordem […] se concretiza nas mais variadas
formas de ajuda recíproca, não só espirituais, mas também materiais” [13].
Nesse mesmo sentido, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil vislumbra a
comunhão eclesial como conseqüência direta da intimidade com Cristo:
É necessário
renovar continuamente as motivações da vida comunitária. Ela tem como raiz a
própria natureza da vocação eclesial e presbiteral… Tem como fundamento a
própria comunhão com Cristo e como experiência básica aquela assídua intimidade
com Ele que faz do futuro apóstolo de hoje um discípulo semelhante aos
primeiros Apóstolos… Tem como perspectiva dois aspectos essenciais da vida do
presbítero: a comunhão com seu Bispo e presbitério e a convivência com o povo… [14]
Em
outra ocasião a mesma conferência enfatiza o caráter gratuito da comunhão,
proveniente de Deus e que, nem por isso, nega a necessidade de se propiciar por
meio de instrumentos eficazes seu estabelecimento pleno: “A fraternidade
presbiteral nasce do Sacramento da Ordem […]. A vida em presbitério é, sem
dúvida, um dom de Deus, que merece sério cultivo por parte de todos” [15].
5 Vida Comum do Presbítero
Depois
de dedicar o número 28 à amizade sacerdotal, “fonte de serenidade e de alegria
no exercício do ministério”[16],
o Diretório se ocupa em dar um aspecto utilitário às proposições, adotando-as,
portanto, à práxis eclesial:
Uma manifestação
desta comunhão é também a “vida comum” desde sempre apoiada pela Igreja,
recentemente recomendada pelos documentos do Concílio Vaticano II e do
Magistério sucessivo, positivamente aplicada em não poucas dioceses.
Entre as suas
diversas formas (casa comum, comunidade de mesa, etc.) deve considerar-se como
mais excelente o participar comunitariamente na oração litúrgica […].
É de desejar
que os párocos estejam dispostos a apoiar a vida comum na casa paroquial com os
seus coadjutores, estimulando-os efetivamente como seus colaboradores e
participantes da solicitude pastoral; por seu lado os coadjutores para
construir a comunhão sacerdotal devem reconhecer e respeitar a autoridade do
pároco [17].
[1][1] JOÃO PAULO II. Exortação
apostólica pós-sinodal pastores dabo vobis: sobre a formação dos sacerdotes
nas circunstâncias atuais. São Paulo: Loyola, 1992. p. 45.
[2] IGREJA CATÓLICA. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório para o ministério e a vida do
presbítero. São Paulo: Loyola, 1994. p. 9, grifo nosso.
[3] Ibid., p. 17.
[4] IGREJA CATÓLICA. Presbyterorum ordinis. In: ______. Compêndio do Vaticano II: constituições;
decretos; declarações. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 452-455.
[5] JOÃO PAULO II. Exortação
apostólica pós-sinodal pastores dabo vobis: sobre a formação dos sacerdotes
nas circunstâncias atuais. São Paulo: Loyola, 1992. p. 42.
[6] IGREJA CATÓLICA. Das obrigações e direitos dos
clérigos. In:______. Código de direito
canônico. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1987. p. 125.
[7] IGREJA CATÓLICA. Lumen
gentium. In: ______. Compêndio do
Vaticano II: constituições; decretos; declarações. 4. ed. Petrópolis:
Vozes, 1968. p. 73-75.
[8] IGREJA CATÓLICA. Presbyterorum ordinis. In: ______. Compêndio do Vaticano II: constituições;
decretos; declarações. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 455-457.
[9] IGREJA CATÓLICA. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório para o ministério e a vida do
presbítero. São Paulo: Loyola, 1994. p. 26-27.
[11] Ibid., p. 28.
[12] Ibid., p. 29.
[13] IGREJA CATÓLICA. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório para o ministério e a vida do
presbítero. São Paulo: Loyola, 1994. p. 29-30.
[14] CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Formação dos presbíteros na Igreja do Brasil:
diretrizes básicas. São Paulo: Paulinas, 1995. p. 12-13.
[15] IGREJA CATÓLICA. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. op. cit., p.
18.
[16] Ibid., p. 30.
[17] Ibid., p. 30-31.
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