Pe. Sidbe Semporé, OP
Trechos escolhidos da Omnis Terra
n.162 /2011
1. Vida Consagrada pacto de Aliança com Deus
A Vita Consecrata que
atualmente constitui o documento oficial de referência para a reflexão sobre a Vida Consagrada (VC), utiliza abundantemente a terminologia e as imagens
bíblicas para fundamentar e explicar esta particular vocação cristã no seio da
Igreja. No entanto, curiosamente, a simbologia da Aliança, tão rica e eloquente
na movimentada história das relações de Deus com o seu Povo e com a humanidade
em geral, não é objeto de uma abordagem específica na consideração que o
Documento faz a respeito do significado do compromisso religioso.
1.1 De uma Aliança para a outra
E no entanto, a Aliança encontra-se no âmago não apenas da lei de
Moises, mas também da missão dos profetas e da piedade dos Salmistas. A Nova
Aliança (Jr 31,31-33) que Deus estabelece com cada membro do Povo, figura da
nova e eterna Aliança selada em Jesus Cristo para a salvação da multidão,
inspira e dinamiza o caminho daqueles e daquelas que, através da graça do
batismo, sentem o chamamento a descobrir em si mesmos/as a iniciativa de Amor
d’Aquele que interpela: Vem, e segue-me!
A união da alma com Deus e a entrega do consagrado ao Senhor constituem um
sinal de fidelidade à Aliança encetada pelo próprio Deus. No percurso
religioso, a Aliança é estabelecida e selada com Deus, não com um instituto. É
ela que dá sentido pleno ao compromisso pessoal do consagrado.
1.2 Companheiros para a vida
inteira
A VC é um convite a descobrir no fundo do coração o valor do Amor
d’Aquele que estabelece uma Aliança para a vida inteira, e que assumiu a nossa
pobre existência humana para lhe conferir uma renovada dimensão, uma nova
orientação. Incutir-lhe-ei a minha lei;
gravá-la-ei no seu coração (Jr 31,33). Ao chamamento de Deus fiel da
Aliança, o consagrado responde com o dom sem reservas da sua própria pessoa, do
seu coração e da sua vida, mediante um compromisso, um juramento, uma promessa
de fidelidade. A terminologia da consagração que nós utilizamos para caracterizar
a natureza dos novos vínculos estabelecidos com Deus desenvolve, de maneira um
pouco abstrata e estática, a realidade dinâmica e relacional da Aliança. Com
efeito a VC desenvolve-se num clima de Aliança que é renovada cada dia por
Deus, mas que por nossa vez por vezes interrompemos e desprezamos.
1.3 Um fiat de Amor sem reservas
Se a VC possui em si algo de esponsal, como o afirma a Vita Consecrata (VC,n.34), é por
intermédio das realidades da Aliança: a declaração de Amor e de fidelidade da
parte de Deus em relação a quem é chamado: És
precioso aos meus olhos, eu estimo-te e amo-te (Is.43,4), e o compromisso
de abandono e de doação (por juramento, voto, promessa...) da nossa parte. este
pacto de Aliança une verdadeiramente Deus ao parceiro humano consagrado ao seu
serviço num fiat sem reservas.
É assim que se confirmam e se evidenciam na vocação à VC a iniciativa de
Amor e de salvação de Deus – e que estabelece uma Aliança especial e pessoal
conosco – e a prioridade da dimensão vertical na nossa resposta ao seu
chamamento.
2. Vida Consagrada pacto de solidariedade fraterna
A regra de Santo Agostinho (atribuída ao Bispo de Hipona, que a teria
escrito aos sacerdotes que ele mesmo reunia ao seu redor em ordem a uma vida em
comum) começa com esta interpelação: Em
primeiro lugar, por que motivo vos congregastes aqui, a não ser por habitardes
juntos na unanimidade, formando assim uma só alma e um só coração? A
referência a At 4,32-35 é clara. O ideal da vida comunitária apostólica
descrito per são Lucas inspirou vigorosamente todos os projetos de vida
fraterna em comunidade. Caracterizando o projeto religiosos de vida em comum
como um signum fraternitatis, a Vida Consecrata remete às pessoas
consagradas o ideal de vida fraterna da Comunidade de Jerusalém.: Exorto, por isso, os consagrados e
consagradas a cultivá-la [a vida fraterna] com ardor, seguindo o exemplo dos
primeiros cristão de Jerusalém, que eram assíduos na escuta do ensinamento dos
Apóstolos, na oração comum, na participação da Eucaristia, na partilha dos bens
materiais e espirituais (VC, n.45), e um pouco mais adiante: Ela [a Igreja] deseja oferecer ao mundo o
exemplo de comunidade onde a recíproca atenção ajuda a superar a solidão, e a
comunicação impele todos a sentirem-se co-responsáveis, o perdão cicratiza as
feridas, reforçando em cada um o propósito da comunhão (VC n.45). Antes a Vita Consecrata, referindo-se à comunhão
das Pessoas trinitárias, vê nesta o manancial e o modelo último da vida
fraterna em comunidade e a possibilidade de que renasça uma nova forma de
solidariedade entre os homens. Favorecendo constantemente o Amor fraternal, de
maneira especial sob a forma de vida comum, demonstrou que a participação na
comunhão trinitária pode transformar os relacionamentos humanos e criar um renovado tipo de solidariedade (VC
n.41).
2.1 Solidariedade social
A solidariedade pode ser definida de duas maneiras: por um lado, a solidariedade passiva, descrita como uma
simples dependência mútua entre os homens, e depois a solidariedade ativa, apreendida como um sentimento que impele os
homens a prestar ajuda uns aos outros. Podemos encontrar facilmente estes dois
aspectos na solidariedade que caracteriza a nossa sociedade: a solidariedade
passiva, existencial, que une os irmãos de sangue, os membros da mesma família,
de uma mesma geração, de um mesmo povoado. Em tal caso, os vínculos são de tipo
familiar – sentimo-nos uns aos outros irmãos ou quase como eles – e impõem-se ao
indivíduo para além de toda e qualquer livre escolha.
Esta solidariedade passiva abre-se, por sua vez, a uma solidariedade
ativa, com a prática de deveres e exercícios de certas obrigações, em relação
aos membros interessados: pais,família alargada, amigos, equipe, etc.
2.2
Solidariedade religiosa
Na VC também vivemos sob o regime desta dúplice forma de solidariedade:
Irmãos, irmãs, companheiros ou companheiras de religião, de profissão, somos
obrigados a manifestar vínculos especiais de solidariedade entre nós no seio do
mesmo instituto: solidariedade passiva, reconhecendo a nossa interdependência (sem
os outros, eu já não seria aquilo que sou), e solidariedade ativa, vivendo as
nossas obrigações, assumindo as nossas responsabilidades de membros de um determinado
Instituto: aceitação recíproca, apoio e auxílio fraternais, reconhecimento dos
direitos e dos deveres de cada um...
2.3
Um renovado tipo de solidariedade
Como já pudemos indicar mais acima: a Vita Consecrata recomenda aos consagrados que constituam no mundo
um renovado tipo de solidariedade. Por conseguinte, como podemos atravessar
concretamente o limiar das formas habituais de solidariedade, para estabelecer
entre os consagrados este novo tipo de vínculos?
2.4
Pacto de sangue
Na Bíblia, a amizade entre
Davi e Jônatas foi selada mediante um pacto de sangue. Ainda existe um pacto
desta natureza entre indivíduos ou entre comunidades. Positivamente, quantos contraíam
tal pacto juravam assistência, ajuda e tutela recíproca por toda a vida; e,
negativamente, renunciavam, ao preço da própria vida, a atraiçoar-se ou a
destruir-se uns aos outros. Jônatas estabeleceu um pacto com Davi, dado que o
amava como a si mesmo (1Sm 18,3). No entanto neste caso, o pacto foi selado
unicamente entre eles dois: havia uma testemunha, o próprio Deus, que garantia
este pacto. Ambos estabeleceram uma aliança perante o Senhor (1Sm 23,18). De
tal modo quando fizeram o pacto tinham direito a esperar toda a fidelidade um do
outro, durante todo o percurso da vida e em todas as circunstâncias. Quem
infringisse tal aliança ficava manchado de ignomínia e desonra. No trecho de 1Sm
20,8, Davi diz a Jônatas: Mostra-te amigo
para com o teu servo, dado que fizeste um pacto comigo em nome do Senhor. se eu
tenho alguma culpa, mata-me tu mesmo...
2.5
Para uma aliança de fraternidade
Aquilo que é possível realizar no plano puramente humano, por interesses
humanos, por que não deveria ser possível fazê-lo num nível diferente, dos
irmãos e das irmãs, selando um pacto de solidariedade perante Deus no próprio
cerne do seu percurso religioso?
Seria como a cereja sobre o bolo do compromisso religioso. No âmago do
compromisso mediante os votos, o juramento ou promessa, também somos convidados
a fazer, sob o olhar de Deus, um pacto de solidariedade ou de fraternidade com
os membros do Instituto, que nos empenha a aceitar, sustentar, proteger e assistir
o irmão ou a irmã, sejam eles quem forem, em nome dos vínculos de aliança
contraídos através da profissão ou do compromisso. Não se trata de transpor
para a religião a prática do pacto de sangue, trata-se simplesmente de tornar
explícito, durante a cerimônia o juramento de fraternidade e de solidariedade
com os membros do Instituto que para nós é verbalizado com as palavras: comprometo-me, em comunhão com os meus
irmãos, a dar toda a vida no serviço apostólico próprio da família pavoniana..
Um compromisso como este, assumido perante Deus e a comunidade, adquire um
valor simbólico vigoroso não só em quem o contrai, mas, inclusive, para os
fiéis ali presentes. Infelizmente, estes
últimos são testemunhas resignadas ou indignadas das rupturas de fraternidade
que se verificam diante dos seus olhos entre irmãos e irmãs de um mesmo
instituto.
2.6
Urgência de uma solidariedade renovada
Com efeito, é necessário reconhecer que no seio dos institutos e das
comunidades de VC, por vezes as malhas da solidariedade fraterna estendem-se
perigosamente.
A solidariedade entre diferentes culturas e raças, entre responsáveis e
o restante da comunidade, entre mais velhos e jovens, entre membros de
conselhos ou de Capítulos... a solidariedade a todos os níveis da VC, vê-se
ameaçada de ruptura ou de debilitação.
Há quem diga, às vezes, infelizmente, que as pessoas entram num instituto,
simplesmente, para realizar a sua vocação, desenvolver os seus talentos,
responder ao seu apelo e alcançar a própria salvação. Cada pessoa sabe que é
preciosa e insubstituível aos olhos de Deus, a tal ponto que chega, assim, a
privilegiar o serviço a Deus, negligenciando a dimensão horizontal deste mesmo
serviço: a solidariedade concreta para com os irmãos e as irmãs. Como se fosse
possível separar o Amor a Deus do amor ao próximo. No seio das nossas
comunidades, constatamos um pouco em toda parte que existem demasiadas
justaposições, isolamentos, marginalizações e exclusões. Em numerosas
situações, as comunidades formam-se e dissolvem-se à mercê de interesse e de
cálculos, mergulhando os próprios membros na insatisfação e na frustração. As
disfunções são devidas, entre outros fatores, a uma carência de solidariedade.
É assim que se explicam as atitudes de não assistência a uma pessoa em perigo
moral, espiritual ou psicológico, as deserções e os abandonos, as abdicações de
responsabilidade,a constituição de bastiões de resistência, de governo
paralelo, de franco-atiradores como num campo de batalha em que uns marcam os
outros, um se protege de um inimigo potencial, que pode ser o seu irmão ou a
sua irmã... a desconfiança insinua a todos os níveis fraturas multiformes de fraternidade
que tornam mais frágil o propósito original de VC: Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos
outros (Jo 13,35). Naturalmente, é necessário desconfiar da ideologia
recorrente de uma comunidade ideal com contornos bem arredondados, em que não
se cessaria de entoar o hino perfumado do levita de antigamente: Oh, como é bom, como é agradável para os
irmãos unidos viverem juntos!(Sl 133[132],1). As comunidades de entusiastas sempre terminaram no delírio ou na
loucura coletiva. A objetividade e a verdade obrigam a ter em consideração as
dificuldades e os limites humanos, que fazem das nossas comunidades lugares de
pecado e de graça, de luta e de conversão. Isto exige de nós que voltemos a
definir sem cessar as finalidades da nossa vida em comum, para não corrermos o
perigo de perder de vista as razões da nossa vocação, recordadas mais acima por
santo Agostinho: Em primeiro lugar, por
que motivo vos congregastes aqui, a não ser para habitardes juntos na unanimidade,
formando assim uma só alma e um só coração em Deus?
2.6.1
Comunidade e fraternidade
Viver em comunidade, viver juntos, somente se transforma em algo
significativo a partir do compromisso solidário a ter uma só alma e um só
coração voltados para Deus. Sem esta exigência cardeal, podemos perfeitamente
construir comunidades regulares, sem história, nas quais, contudo, faltará o
essencial: a comunhão fraterna, a solidariedade efetiva. Um autor constata,
justamente: Aquilo que hoje é rejeitado é
a comunidade, que era essencialmente a vida em comum, ou seja, a uniformidade,
a regularidade, a comunidade de práticas e observâncias; é a comunidade
congregada pela autoridade para realizar uma obra específica, e na qual as
pessoas não se preocupam demasiado em valorizar as aptidões de cada um. A
caridade torna-se somente sustentáculo mútuo, muito mais do que partilha e
enriquecimento recíproco (B-M. Amoussou, Pentecôte d’Afrique, n.20, 1995,pág.29). Durante as nossas revisões
de vida comunitárias, observamos com frequência que existe pouca fraternidade
no seio das nossas comunidades, nos nossos relacionamentos e no nosso
testemunho no meio do povo. A máquina comunitária pode funcionar de modo
regular e eficaz; mas quando falta o óleo da solidariedade, o edifício no seu
conjunto perde a sua pertinência evangélica. Este é o sentido da observação de
B-M Amoussou, no citado artigo: É
possível viver em comunidade por interesse, sem verdadeiros vínculos
interpessoais, contanto que se viva por alguma coisa: do mesmo modo, pode-se
viver em fraternidade sem estar necessariamente sob o mesmo teto, contanto que
os vínculos subsistam (B-M Amoussou ibidem
pág. 27).
2.6.2
Opção preferencial pela harmonia
No que se refere às comunidades, penso que hoje temos o dever de mostrar
a vida religiosa como um serviço gratuito do Senhor e um compromisso a
constituir lares de fraternidade e a enfrentar com coragem e tenacidade o
desafio da paz, da acolhida e do perdão. Assim, poderíamos refletir e viver
como comunidades comprometidas em dar testemunho diariamente de fraternidade na
tolerância e no diálogo. O Sínodo Especial dos Bispos para a África, promovendo
a imagem-força da Igreja-família como germe de uma eclesiologia renovada,
dirige uma interpelação especial àqueles e àquelas que, por vocação, se oferecem
para construir um novo tipo de família, fundamentada explicitamente nos
critérios evangélicos de comunhão e de fraternidade. Deste modo, diversamente
das Entidades filantrópicas e beneficentes, não seríamos apreciados e aceitados
antes de tudo por sermos simples Associações assistenciais, educativas e
caritativas, mas como cristãos que se esforçam por viver e irradiar o
mandamento supremo do seu Mestre: Amai-vos
uns aos outros como eu vos amei... Não existe Amor maior do que dar a vida pelos
próprios amigos. Isto é suficiente para dar pleno sentido ao projeto de vida
religiosa. Seria a nossa maneira de concretizar a recomendação contida na Vita Consecrata: No nosso mundo, onde
frequentemente parecem ter-se perdido os vestígios de Deus, torna-se urgente um
vigoroso testemunho profético por parte das pessoas consagradas... a própria
vida fraterna é já uma profecia em ato,
numa sociedade que, às vezes sem se dar conta, anela profundamente por uma fraternidade sem fronteiras (VC.n
85).
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