No dia 23 de abril de 1960 – portanto, há exatos 50 anos atrás
- a pílula anticoncepcional recebia a permissão para ser receitada,
distribuída e vendida explicitamente como anticoncepcional oral nos Estados Unidos.
Começava uma “revolução” que incidiria nos anos seguintes na vida de milhões de
mulheres de todo o mundo, e através delas nos homens, nas famílias e nas
sociedades de todas as nações.
Qual era a grande novidade trazida pelo pequeno comprimido que, engolido
por milhares e milhões de mulheres, passou a ser o símbolo de uma
“libertação”? Libertação da vinculação necessária do exercício da
sexualidade com a possibilidade de uma nova gravidez. Libertação do
desejo e da satisfação sexual pessoal de suas concretas conseqüências, no caso,
um filho não planejado nem desejado. Libertação, em certo sentido, da
corporeidade feminina com relação à masculina, já que agora as mulheres não
estariam mais sujeitas a conseqüências de suas relações sexuais, tais como
sempre o haviam sido os homens.
Era o fim de uma ditadura que dizia que “em homem nada pega”, “o homem é
polígamo por natureza” e por outro lado confinava as moças “de família” a uma
excessiva proteção ou mesmo confinamento, já que uma prematura ou indesejada
gravidez ainda solteiras poderia expô-las à execração pública, e condená-las a
uma vida de solidão, sem marido e sem respeitabilidade. Com a pílula, as
mulheres poderiam enfim tomar as rédeas de sua vida sexual e decidir com quem,
quando e em que circunstâncias desejariam que seus ventres ficassem grávidos de
filhos queridos, planejados, desejados.
A Encíclica “Humanae Vitae”, do Papa Paulo VI, documento que trata
justamente da concepção e contracepção da vida humana, lançado já dois anos
antes da liberação da pílula anticoncepcional, em 1968 ficou conhecida como a
“encíclica da pílula”. Justamente por se posicionar contra a mesma antes
mesmo de sua liberação, mas já a prevendo.
A nosso ver, isso é uma injustiça. Na “Humanae Vitae” há muito mais
que uma condenação da pílula. Há, isso sim, uma profunda e bela reflexão
sobre a vida humana em sua totalidade e integralidade. O documento papal
se move e se expressa dentro da dinâmica que permeia toda a revelação e a
teologia que dela é reflexão: a dinâmica do dom.
Se há algo central para a fé cristã, trata-se do fato de que tudo é -
primordial e inalienavelmente, - dom de Deus. A economia da fé e da
salvação cristãs é, pois, uma economia do dom, e não uma economia de domínio e
de poder, onde a indústria humana é quem toma as decisões fundamentais sobre
algo que não produziu nem pode produzir, mas que é dado por Deus. O ser
humano se define por ser alguém que é paciente mesmo quando agente. Portanto,
criado em liberdade, percebe não poder produzir-se a si mesmo, dar-se a si
mesmo o ser. Tem que recebê-lo de outro.
Esta recepção gratuita e amorosa não invade nem desrespeita sua
liberdade, mas inversamente, pede sua colaboração e sua ativa
participação. Assim é que o ser humano, homem ou mulher, é chamado a
conduzir a história na direção que o Senhor lhe mostra como sendo a de sua
plena realização. Como segurança e garantia nada mais do que as palavras
que Abraão escutou e, na sua esteira, todos os homens e mulheres que fizeram na
história a bela e transcendental experiência da fé: “Eu estarei contigo”.
O documento que se posiciona contra a pílula anticoncepcional por ser um
método artificial de evitar a gravidez é o mesmo que estimula os casais
cristãos e católicos a exercerem a paternidade e maternidade responsável.
Ou seja, sabe o Papa e o magistério da Igreja que a vida moderna não permite
que se deixe acontecer a prole sem um planejamento responsável, maduro,
refletido e assumido conjugal e comunitariamente, na oração, no discernimento e
na escuta da comunidade eclesial.
Contra que está a Igreja ao se declarar contra a pílula, então?
1. Está contra a invectiva de reduzir a natalidade – tentação
diabolicamente neo-malthusiana – pela qual os países ricos querem penalizar os
países pobres para poder usufruir mais e mais impunemente de suas riquezas e
ter que reparti-las com menos pessoas.
2. Está contra uma paternidade e maternidade que se auto-constituam
em juízes únicos e absolutos da prole que pretendem ter. Embora
reconhecendo explicitamente o direito que os cônjuges têm de “ em relação às
condições físicas, econômicas, psicológicas e sociais, ... fazer crescer uma
família numerosa, como com a decisão, tomada por motivos graves e com respeito
pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um
novo nascimento. “ (n. 10).
3. Está contra uma utilização irresponsável de meios artificiais
que tornem infecundo o ato conjugal e abram por aí uma porta a outras medidas
como o aborto ou a esterilização involuntária de mulheres como acontece ou tem
acontecido por parte de organizações privadas ou públicas e até mesmo de
governos irresponsáveis (cf. o que diz a encíclica no n. 17).
4. Está contra recomendar o uso (há cinquenta anos atrás) de um recurso
químico recente, do qual ainda não se sabiam nem conheciam as
conseqüências. A equipe de peritos convocada já por João XXIII em 1963 e
que por sete anos trabalhou com ele e com seu sucessor Paulo VI não tinha
nenhuma certeza sobre as conseqüências que a pílula poderia trazer ao corpo da
mulher ou aos filhos que ela viesse a gerar após ingerir a pílula.
A favor de que está então o Papa ao escrever a Humanae Vitae?
1. Em primeiro lugar e inegavelmente, podemos afirmar que está a
favor da vida. E isso pode ser sentido desde o primeiro parágrafo até o
último do texto pontifício. Sua única preocupação é proteger e preservar
a vida em sua sacralidade e sua beleza, tal como a deseja e a concebeu o
Criador.
2. Em segundo lugar, quer proteger a instituição do matrimonio
cristão. Quer colocar bem altos seus ideais, suas finalidades, seus
objetivos. Quer reafirmar a beleza da união entre o homem e a mulher no
matrimonio e apontar para o fato de que esta união tem finalidades mais altas
do que simplesmente o prazer imediato e a satisfação de necessidades
biológicas.
3. Quer reforçar a responsabilidade e o dever gravíssimos que
implica o fato de ter filhos e gerar novas vidas. Trata-se de uma
participação direta na obra do Criador, portanto algo que fala alto sobre a
criação do ser humano à sua imagem e semelhança.
Finalmente, gostaríamos de ressaltar o grande benefício que significou
para a humanidade a descoberta da pílula anticoncepcional. Evitou
certamente a morte de milhares e mesmo milhões de mulheres que sem ela estariam
irremediavelmente condenadas à morte por partos sucessivos ou inevitáveis ou ao
aborto muitas vezes feitos em condições inadequadas e por isso mesmo também e
igualmente mortais.
Hoje, com a distância histórica de cinqüenta anos, é possível ver que a
produção dos anticoncepcionais também avançou. Há mais cuidado por parte
dos médicos ao receitar pílulas a suas pacientes e por parte destas em
tomá-los. Há várias mulheres que preferem outros métodos para evitar a
gravidez, sem química, sem interferência direta em seu organismo.
Porque não se pode esquecer, sobretudo quando se é mulher, que ao fazer
a tão temida mamografia, exame doloroso e atemorizador para rastrear e agarrar
precocemente o câncer de mama, uma das primeiras perguntas que ouvimos por
parte do radiologista é esta: “Toma ou tomou pílula anticoncepcional”?
O Papa Paulo VI e seus assessores não estavam tão errados ao não
recomendar a pílula, sobretudo em um momento em que esta apenas iniciava sua
trajetória de distribuição ao grande público. Mesmo se não foi este o
motivo principal porque a condenaram. Eis aí um motivo a mais para não
simplificarmos uma reflexão que está longe de ser simples, pois o passar do
tempo só faz complexificá-la ainda mais.
Dra. Maria
Clara Lucchetti Bingemer
Doutora em Teologia, professora do Departamento de
Teologia da PUC-RJ e
Diretora do Centro Loyola de Fé e Cultura.
Fonte:http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=15073&cod_canal=47 (acesso em: 26/05/2010).